Thursday, March 30, 2023

Anjo caído

 


                         Gabi acorda com a queda do quadro que pendurou na parede da sua sala. Ele caiu bem em cima dela. Assustada, ela olha em volta e vê que o seu apartamento está pegando fogo! As chamas já estão tomando conta de tudo, e uma fumaça escura com cheiro forte vai se avolumando no ambiente. Tossindo muito, quase sem ar, e sem poder enxergar direito, a única coisa que ela consegue pensar em fazer é tentar fugir imediatamente. Antes, mesmo morrendo de medo, resolveu pegar o quadro com a pintura que a sua avó tão querida fez para ela, e também pega a Pretinha, gata que por sorte estava ali aos seus pés.

                          Pede socorro à vizinha sempre alerta que vai logo ligando pro bombeiro. Ela pergunta como foi que o fogo aconteceu e Gabi lembra que na noite passada acendera uma vela. Esquecendo dos conselhos que a sua mãe lhe deu sobre nunca dormir deixando algo aceso dentro de casa, ela acabou caindo no sono cansada, quando deitou no sofá.

                         Muita coisa se queimou. Parte de uma cortina, livros da estante, inclusive o que ganhara no concurso de redação promovido pelo professor preferido da escola, a antiga pasta com papeis de carta, algumas fotos de amigos que separou para colar num mural, a coleção de vinis...Ah, que tristeza esse incêndio! Restava saber o quanto de roupa, entre outras coisas importantes e de valor (mais emocional)  foram queimadas com o fogo que saiu percorrendo não só a sala,como também o quarto e o escritório.  

                           - Poderia ter sido muito pior, Gabi. Pelo menos você acordou a tempo. E por falar nisso, menina... como foi que você acordou?!  - perguntou curiosa e aflita, a vizinha Beth.

                           - Na verdade, nem eu sei... – disse Gabi tentando ajeitar os cabelos que exalavam o cheiro da destruição. - Tive um sonho estranho. Alguém tentava me tirar do sofá, me puxava, e eu não queria sair...

                             - Quem era esse alguém, você consegue lembrar? – Beth adorava essas coisas meio sobrenaturais.

                             Cenas do sonho foram aparecendo na mente de Gabi enquanto tomava um cafezinho oferecido com tanto carinho pela vizinha, que já não via a hora de contar sobre o incêndio aos outros moradores do prédio.

                             - Meu Deus, agora eu lembro do sonho!  - impressionada, Gabi relata que foi a sua avó quem apareceu tentando tirá-la do sofá. A mesma que pintou o quadro do anjo. Quadro que tinha caído em cima dela. Salvando-a do perigo de ser queimada.

 

Saturday, March 04, 2023

O carnaval de Roma

 


           É hoje que ele sai desse lugar! Vai aproveitar o carnaval pra sair do armário!

           Peruca loira, batom vermelho, make transada,  glitter na pele, um shape bem trabalhado na academia, e em cima do salto. Tudo isso para sair na avenida distribuindo confetes, serpentinas, amor e alegria. Ao se olhar no espelho, diz ao seu próprio reflexo:

            -Hummm...Amei! Superei minhas expectativas! - borrifou no ar o perfume, e passou por ele com tudo.  Sentiu-se pronta para cair na folia, e na sua colorida realidade.

                 A avenida virou passarela. Alguns olhares fixos lhe davam mais confiança. Seu coração batia no ritmo dos tambores. Estava ansiosa por esse dia. Dia de assistir ao desfile das escolas de samba no camarote da agência. Enfim, seus colegas de trabalho iam conhecer o verdadeiro José Roberto, a Roberta Maria. Roma para os íntimos.

-Genteee! -  foi o abre-alas escolhido pela estagiária quando o avistou na entrada - Olha o Zé Robert...

              -Hey, girl! -  gritou a mais nova foliã - Eu sou Roberta Maria! Mas podem me chamar de Roma - e foi pegando um drinque, que virou de vez.

       -  Uauu! Quem tem boca vai à Roma! – disparou sem graça com a falta de criatividade o César, redator da agência, que estava de bombeiro.

- Sim, quem tem boca pode chegar chegando aqui, que essa Roma tá bem facinha!

- Oh, baby! – reagiu o bombeiro, lhe sorrindo e dando uma piscadinha.

                 De cropped verde e sainha rosa, Roma estava toda prosa. Era tão bom se sentir aceita. Muitos ali já desconfiavam, mas nunca lhe faltaram com o respeito. E ela nem estava preocupada com os outros. Só queria poder ser ela mesma.  

José Roberto já tinha reparado no seu parceiro de job, mas naquela noite, ele estava muito mais interessante. Vai ver era só coisa de carnaval. Seria mesmo só isso?

Do nada, flashes do dia a dia na agência foram jogados na sua cara como confetes coloridos: os cafezinhos sempre a sua espera, assim como o jornal sempre a postos, os convites ao cinema, os tantos encontros por acaso no banheiro, onde trocavam piadinhas, os esbarrões frequentes. Almoços ali por perto da agência, com discussões saborosas sobre os mais variados assuntos, brincadeiras com as palavras, as caronas de volta pra casa... Junto com essas lembranças que vieram à sua mente, mexendo tanto com o seu coração, veio também uma inevitável pergunta: “ Será que o César também é?”

Outra piscadinha desse bombeiro, e ela não vai resistir!

Alguém chama toda a equipe da criação pra fazer selfie, e ao chegar perto do colega, Roma até se arrepiou. A coisa esquentou quando depois de encará-la, César piscou novamente.

Nesse momento, Roma tirou o bombeiro pra dançar, e ele meio sem jeito acabou aceitando o convite. Os dois deram um show. E não importava o ritmo, eles acertavam todos os passos. Incrível como essa parceria deu match também no samba!

-E esse fogo todo, não se apaga nunca? – quis saber César, ao ver que o antigo e agora mais nova colega estava derretendo.

-Depende desse bombeiro aí... - intimou Roma.

 E antes que César repetisse a piscadinha , ela lhe roubou um beijo, que foi, sem medo, muito bem correspondido.

José Roberto extravasou o que tinha guardado durante aqueles vinte e nove carnavais. O corpo que antes tentava controlar, dava lugar a outro que fez o que sempre desejou fazer. Sambou, rebolou, sentou, galopou, jogou charme, gargalhou, cantou, falou sem temer com o tom de voz que gritava dentro dele, voz que sempre quis usar.

- Hey, César! Você já viu o que é Roma ao contrário?

- Roma ao contrário, como assim?  Ah, a-moR?

- Sim, meu amor! – declarou-se Roma,  agarrando e beijando novamente o seu amor de carnaval, que, quem diria, já o havia encontrado no trabalho. E agora, José?

De volta ao expediente, César vai cantarolando pelo corredor da agência, lembrando do surpreendente e quente carnaval que curtiu. Passa pelo seu colega dando a sensual piscadinha. E Roma já fica imaginando como vai pegar fogo a noite daquela quarta-feira de cinzas...