Friday, January 21, 2022

Do mar



 Giulia lembra da mãe lhe contando histórias sobre uma amiga casada com alguém que trabalhava embarcado. E antes mesmo dela dizer dessa água eu nunca beberei, quando viu, seu marido trabalhava embarcado também. No começo, Giulia se sentia um pouco incomodada com a ausência do seu querido amor, mas depois foi se acostumando e até aprendeu a gostar.

Quando sua filha ia para escola, e ela se via livre dos serviços que a casa implorava pra fazer, Giulia ia caminhar pela praia. Gostava de olhar o mar e ver as ondas num hipnotizante vai-e-vem. Ondas que vinham ora calmas e minúsculas, ora enormes e violentas. E era isso mesmo que fazia o mar ser mar, essa instabilidade. Essa frieza inicial que a impedia de ir lá e dar um mergulho de cabeça, mas quando resolvia enfrentar a temperatura, o seu corpo acabava aos poucos se tranquilizando, e a paz e a alegria vinham como as ondas, batendo com força, e também suavemente a acariciá-la. Ela se sentia relaxada, revigorada, e até mais feliz. A água salgada funcionava realmente como um remédio. O banho de mar era um banho doce. Era o seu mar doce mar.

Ao contrário do que muitos pensavam, nos dias em que o marido estava embarcado ela não se sentia um peixe fora d’água. Ela caía na tentação de cair numa rede, e se embalava no movimento de ser só ela mesma. Nos livros, nas músicas, nas danças, na escrita, nos amigos, nas lembranças... Ela mergulhava num mar de gente e sensações que às vezes até chegava a se afogar, a ficar sem ar, sem fôlego de tanto que conseguia respirar fundo. Bem fundo. No poço sem fundo da saudade. E só saía dele quando o seu marido enfim voltava, lhe resgatando do maremoto.

Giulia sabia que seu casamento ia ter os seus altos e baixos. O homem com quem se casou nunca lhe escondeu nada, não lhe prometera um mar de rosas. Foi uma decisão tomada com sede. Sede de realizações, sede de algo que ela até hoje não sabe identificar. Só sabe que virou o copo de vez, tomou a decisão no calor da paixão. Se jogou na maré alta sem poder enxergar o perigo a que estava se submetendo. O perigo da maré agitada se transformar, do nada, numa maré baixa, calma, sem graça.

Seria mesmo doce morrer no mar? Num mar de amor? Tranquilo, sem ondas. Ondas que ela mesma teria que de vez em quando criar, ou tirar. Ela teria que agitar o mar por onde escolhera navegar. Ela no fundo sabia que tinha esse poder, e não podia abandonar o barco. Continuava remando. Às vezes contra a corrente que ao mesmo tempo que a aprisionava, a protegia. E assim seguia... Entendendo hoje a que sua mãe se referia quando falava da amiga: “Quem é do mar não enjoa.”


Saturday, January 15, 2022

Jardim de inverno




“Mudaram as estações, nada mudou...”

No frio, as flores dormem. E despertam belezas diferentes das que são vistas na primavera: Girassóis semsóis, rosas marrons, árvores secas, cheias de galhos agora sem nenhum sinal de folhas, de vida. São veias onde não correm cores, mas onde a lua quando aparece através delas, brilha ainda mais. O sol consegue surgir, não tão forte a queimar, mas chega sim a iluminar.

A frieza se faz presente e é insistente, independe de estação. Está também nas trocas, que não se dão. E nos contatos, sem tato. Um jardim de mim, com espinhos a flor da pele, a ferir, e a fé ri. Um solo fértil a ser semeado mas que só nasce, quando se esquece. Quando enfim, o frio se disfarça, e com máscaras floridas, aquece.

Inverno também pode ser colorido. E ter dias mais quentes. Basta saber pintar o quadro de uma fria realidade usando os pincéis da fantasia, da imaginação. Do Zoom das reuniões.

Inverno é uma estação para ensinar a acalmar, a abdicar, a transformar. Uma estação que também traz flores: as mais fortes, mais elegantes, mais persistentes e inteligentes.

No frio, jazem em mim, dores que dormem. Jasmins de uma infância a reflorescer e a perfumar. Jasmins perfumando o ar com o cheiro das minhas avós, Alma de flores, Rastros de Alfazema Suissa... Infância que me traz o ler, escrever, cantar e dançar. Infância que me traz vozes.

Plantando árvores, já saboreando possíveis frutos. A querer deitar e rolar, feliz, nas minhas sombras.

Com as folhas no chão, ou já não, a aprender. Pelas flores, que, lindamente virão, a pacientemente esperar. Ao olhar para o outro, entender, traduzir as suas raízes e aceitar, amar.

 Deixar de estar plantada e andar, para assim me conhecer, me reconhecer, me identificar. Para assim, crescer, alcançar o tão difícil adaptar. Um outro enraizar. Com o adubo do sofrer.

Lágrimas, mágoas, a cuidar de um jardim. Jardinverno, primas que verão. Primavera, verão, outono... Ou nada.

A paixão, abdicada. E assim, imortalizada.

Histórias a se viver. Histórias a se contar. A se imaginar. E a ferir. E a fé ri. E a felicidade com a saudade, no meu peito ainda mora. Amora, mangaba, goiaba, maracujá, pitomba, umbu, cajá, caju...

A vizinha de frente, olha o seu jardim e decide seguir em frente. Enfrente!

“Quem tem flores, dá flores”. “Vejo flores em você”. “Estátua majestosa do amor”. “Simplesmente, as rosas exalam o perfume que roubam de ti.”

Às vezes o solo não permite, e a flor resiste. Em nome de um jardim, em nome de espinhos, a ferir, mas a fazer feliz. Semente de um outro país. Bonito por natureza.

A flor de uma pele a sentir. Sem ti. Sem raiz. Retirada, extraída. Dividida. Despetalada. Replantada. Reproduzida. Abdicada. Abduzida.

Dos trópicos a tropeçar, a cair... Pau que nasce torto, sim, se endireita.

Um tronco, mesmo torto, tem sim a sua beleza.



Monday, January 10, 2022

O bebê de Lucimar




                      Passar as férias na fazenda dos avós no interior era sempre uma aventura para ele. As noites de verão se transformavam num super evento onde as criadas contavam horripilantes histórias de terror. As personagens dessas histórias, elas juravam por tudo o que era mais sagrado, que realmente existiam por ali. Por isso que o medo ficava ainda maior. Conseguir dormir com tanta assombração na cabeça, tantos espíritos e seres de outros mundos rondando pelo escuro do quarto e do lado de fora da casa, era sempre um processo demorado.

                        Hoje, quando vai à velha casa da fazenda, lembra com carinho do tempo que passou com seus primos, da infância repleta de momentos tão mágicos que ele faz questão de recordar. Um episódio dessa série de acontecimentos na fazenda foi o que mais marcou. Quando ele encontra os primos, é o assunto que mais predomina. O que antes os amedrontava, agora é motivo de risadas, principalmente quando é ela mesma que, mais uma vez, resolve contar. A história do bebê da Lucimar, o Luzinho, que até hoje prefere ser chamado assim.

                       Lucimar é uma das criadas da fazenda. Ela sempre gostou muito de contar histórias para as crianças, e apesar de não conseguir falar algumas palavras corretamente, era sempre agradável ouvi-la. Nas noites de lua cheia ela se sentia mais inspirada. Devia ser coisa da lua, dizia a sua mãe. Tem gente que muda quando ela está nessa fase tão cheia e iluminada. Por isso que aquele ser misterioso aparecia no quartinho dela nessas noites. Um ser que até hoje ela não sabe explicar de onde veio e nem para onde foi...só sabe que suas visitas ao mesmo tempo em que eram assustadoras, foram também muito prazerosas.

                       O ser dizia que, num canto escuro da fazenda, escutava as histórias que ela contava para as crianças e se encantou com a forma que ela falava, gesticulava e interpretava. Ela parecia se esforçar para convencer as crianças dos relatos, sem saber que as seduzia sem precisar fazer nenhum esforço. Numas noites estava mais calma. Já noutras, parecia estar possuída. Ela ficava do jeito que ele gosta. O capeta em forma de mulher. E eram nessas ocasiões em que ele, quem diria, logo ele, se via tentado a levá-la ao paraíso.

                         A primeira vez que ela o viu, quase gritou. O ser invadiu o seu quarto, a sua cama, e não brincou em serviço. Antes, mandava ela contar alguma das histórias, do mesmo jeito que fazia com as crianças. Lucimar com medo de morrer, gaguejando de tão nervosa, ainda conseguia contar. A expressão do ser ia mudando, ele olhava para ela como que enfeitiçado, e não resistia, tinha que tocá-la. Lucimar rezava para ele não mais aparecer, mas quando ele sumia, sentia falta do calor do seu corpo. Ela até arranjava uma maneira de invocá-lo, pensava muito nele à luz da lua cheia. E quando ele reaparecia, Lucimar tinha outros tipos de histórias pra lhe contar, ou melhor, as histórias eram na verdade, sussurradas...

                          O resultado desses encontros quentes foi o nascimento do Luzinho. E quando perguntada sobre a origem desse apelido, Lucimar responde que vem do nome do pai, do Lúficer. E ao som das risadas, começa a contar novamente sobre o ser que a visitava nas noites de lua cheia.


Sunday, January 09, 2022

Grand finale sem Snow




 Além de pedir pessoalmente quando foi tirar foto com ele no shopping, Aninha também escreveu uma cartinha:

“Oi, Papai Noel! Queria lhe dizer que fui uma boa menina durante este ano. Pode perguntar aos meus pais. Tenho certeza que eles vão confirmar. Meus irmãos também. Gosto de cantar, dançar, e mesmo quando estou muito fraca, com febre, e dor, procuro ficar feliz.

Na nossa casa apareceram uns ratos, e eu me assustei muito quando os vi. Tanto, que minha mãe prometeu que eles iriam embora. Fez uma armadilha fatal para os roedores. Pena que quem caiu foi o Gizmo, nosso pequenino chihuahua. Só de lembrar me dói. Ele ficou tremendo e foi se esconder embaixo da minha cama. Deve ser porque me viu uma vez fazer isso quando estava com medo. E ficou perto de mim como se estivesse me consolando, me dando apoio, não sei. Só sei que me ajudou, me fazia bem a companhia dele. Agora, já não faz. Ele se foi. Meu irmão disse que nem parecia ser mais ele. Não tinha aquela alegria, não tinha nenhum sinal de que era o nosso Gizmo. E realmente não era. Porque na mesma noite sonhei que ele saltitava numas nuvens. Ele estava brincando no céu. No céu dos cãezinhos. Acordei lembrando da cena, lembrando dele, de tudo que a gente fazia juntos e chorei um pouco, mas foi também de saudade.

O que eu quero de presente de Natal é um outro animalzinho.

Beijos, Aninha.”

Ao ler a cartinha da menina tão magrinha e de lencinho florido na cabeça, Seu Manoel se sensibilizou. Imediatamente lembrou da Angel, gata da sua vizinha, que teve filhotes.

Na noite de Natal, Aninha estava ansiosa. Embaixo da árvore já branca de neve como o seu pai falou, junto aos outros embrulhos, tinha uma caixa de sapato que se mexia. Ela foi correndo ver o serzinho, que colocou a cabeça alva com pequeninas manchas pretas, para fora da caixa. -Snow!- Aninha gritou já o batizando, e ele pareceu ouvi-la, pois caiu rolando e parou bem próximo aos seus pés. “Papai Noel realizou o meu desejo!” disse a menina encantada, agarrando o seu mais novo bichinho. A alegria dela contagiava a todos. Incrível como um corpinho tão franzino e sofrido conseguia ficar tão animado. A família toda estava sorrindo ao ver Aninha tão feliz, a cantar e a dançar. Viveram um Natal realmente mágico. Vestida de estrela, usando um lencinho brilhante na cabeça, Aninha se apresentou num palco improvisado. Tinha irmãos que faziam um bom trabalho de produção. Na plateia estavam seus amigos e vizinhos, inclusive o seu Manoel, radiante por ver que ela gostou do presente. Snow aparecia do nada e dava um brilho a mais ao pequeno espetáculo. Devido ao sucesso, a temporada foi estendida. Depois do Natal, o show da Aninha teve que continuar.

 Ao sair de cena após uma das performances mais aplaudidas, Aninha foi buscar seu gato que naquele dia não saiu debaixo da cama dela. Preocupados com a demora da filha, seus pais entreolharam-se, deram as mãos, e respirando fundo, foram ao encontro daquela estrela, que mesmo sem ter tido tempo de mostrar um Grand finale com a presença do seu pet, ia continuar brilhando na memória de cada um que a conheceu.

Snow sumiu por um tempo. Depois reapareceu. Estava deitado num dos lencinhos floridos que Aninha costumava usar.


Saturday, January 08, 2022

Néctar apimentado



Eu era a ansiedade em pessoa esperando aquela nova funcionária do meu restaurante em Nova York. A sua documentação dizia que era também brasileira, e da Bahia! Quando ela chegou, que surpresa boa! Boa naquele sentido mesmo! Que coisa mais linda, mais cheia de graça, como diria o poeta! Tenho certeza que deve sentir falta de uma boa noitada regada a cervejas e caipirinhas, de um samba no pé, um bom churrasco, um forrozinho com direito a cheiros no cangote...

A cumprimentei em inglês, não quis entregar logo o jogo. Ela sorriu, e eu dei graças a Deus por estar sem máscara. Expliquei como seria o trabalho, e percebendo o seu sofrimento tentando me entender, não resisti e falei que minha mãe também era brasileira. Num gesto que demonstrou tanta alegria e alívio, ela disse:

- Sério?? Você também fala português?? – Falei que sim. Ela veio chegando perto, me deu um abraço apertado, e eu senti um cheiro tão bom! Como foi gostosa aquela sensação! Meio sem jeito, ela se afastou um pouco e olhou para o meu pescoço: - Nossa, tantas pintinhas você tem aí... – Você ainda não viu nada- me escapou. Rapidamente mudei de assunto, e perguntei quando ela poderia começar o serviço. Agora mesmo! ela falou prendendo os lindos cabelos negros. Sua tatuagem na nuca não passou despercebida. Elogiei e disse que também gostava de borboletas. Ela me confessou que não era a única, que tinha outra tattoo escondida. Morto de curiosidade não hesitei: perguntei qual seria e onde estaria a outra arte no seu corpo. Ela foi levantando o seu vestido e eu não acreditava no que estava acontecendo. Com um jeitinho inocente, baixou um pouco a calcinha rendada e me mostrou parte de outra borboleta, dizendo: - Essa outra fica bem perto da minha flor! – e antes que eu pudesse vê-la todinha, ela cobriu com o vestido. Sem saber o quanto tinha mexido comigo, ela foi começar o serviço. Saí da cozinha e fui ver como estava o movimento na área externa do restaurante. Já tinha um número razoável de clientes e eu estava com uma surpreendente disposição para atendê-los.

No final do expediente, fui me despedir da minha mais nova funcionária. Ciente de que éramos os últimos a sair, perguntei como foi seu primeiro dia. Sorrindo, ela falou que o seu dia foi bom, mas que ainda poderia ser bem melhor. Olhando novamente para o meu pescoço, ela foi se aproximando de mim e levantando o seu vestido, dessa vez a mostrar toda a outra borboleta, junto a sua flor, que estava depilada bem à brasileira. Eu não perdi tempo e caí de boca naquelas pétalas que estavam além de úmidas, muito cheirosas. Entre gemidos, depois de me conduzir ao seu néctar apimentado, enlouquecida de prazer, ela me puxou, tirou a minha camisa e parecia brincar de ligar os pontinhos com a sua língua por todo o meu corpo. Ao descobrir onde eu tinha mais uma pinta, ela o encheu de beijos, abocanhou tão firme e deliciosamente, a ponto de me fazer gozar quase levitando.

Nunca uma funcionária começou a me mostrar serviço dessa maneira. Nunca tive um dia de trabalho tão quente numa primavera. Já começo a imaginar como serão os nossos dias de verão...


Friday, January 07, 2022

A paixão de João




 

Sabia de cor a história de quase todos os santos. Acreditava em todos eles. Era incrível uma fé tão grande e contagiante. Todo santo dia ele fazia questão de contar uma história juntamente com o milagre correspondente.

São José, Santo Antônio, Santo Expedito, São Judas Tadeu, São Raimundo, São Francisco, São Jorge, São Bento... Santa Rita, Santa Teresinha, Santa Bárbara, Santa Cecília, e todas as Nossas Senhoras. Todo problema que os frequentadores da paróquia apresentavam, todas as vezes que alguém lhe pedia ajuda, ele aconselhava rezar para determinado santo e dava a certeza de que assim a solução estaria a caminho.

Faltando pouco para enfim se tornar padre, foi para o quartinho da sua casa, onde escondia pinturas, textos, e até fitas cassete com músicas que gravou. Resolveu mostrar tudo para um amigo de longa data. Gabriel, surpreso ao ver todo aquele belo material, lhe disse:

- Mas, João... Eu não sabia o quanto que você é talentoso!

- Eu, talentoso? – Perguntou desacreditado o seminarista.

- Sim, você não vê?? Pra mim você é um artista! – Anunciou-lhe o amigo Gabriel.

Emocionado, João olhou para as imagens de tantos santos que tinha. Elas costumavam ser a sua plateia. Somente elas haviam assistido às suas apresentações.

Mas a devoção daquele público infelizmente não era o suficiente. Não para Gabriel, que imediatamente pegou o celular e começou a tirar fotos. Saiu registrando as pinturas, os textos. Conseguiu achar o gravador antigo e pôs algumas fitas para tocar. Gostou tanto da voz de João a cantar, e também das músicas. Quem diria que aquele amigo sempre tão calado, tímido, que se soltava e ficava tão atraente quando tomava umas taças do sangue de Cristo, fosse dono também desses atributos.

- Você deveria ter fé também no seu trabalho.

- Mas eu tenho- falou João - E vou me realizar sendo padre.

- Você pode unir as duas atividades, ser um padre artista. – Aconselhou Gabriel.

Olhando novamente os textos escritos por João, Gabriel lembrou de umas cartas que recebeu certa vez, de uma suposta admiradora secreta. As cartas têm poesias e desenhos de paisagens parecidas com as que estavam ali...



Thursday, January 06, 2022

Porta que não fecha

 





A porta está quase sempre encostada. Para abri-la não é necessário virar a maçaneta antiga. Até ao passar por ela, às vezes apressadamente, ouve-se ela se abrindo sozinha.

Lá embaixo é frio e escuro. A escada é de aparência frágil e ao mesmo tempo perigosa, de madeira, sem corrimão. O verde do qual ela foi pintada é um verde musgo, deixando ainda mais escuros os degraus que chegam a ser de alguma forma, convidativos.

Uma mancha escura no final da escada mostra o quanto foi tentado apagá-la, mas mesmo assim, teimosa, insiste em aparecer gritante.

Um piano velho fica no lado direito, no esquerdo ficam os aquecedores, uma escrivaninha com gavetas, um mural com cartões postais e alguns desenhos infantis coloridos e ainda assim, depressivos.

 Várias prateleiras com caixas guardam enfeites de natal, embalagens de presentes, cadernos, bloquinhos de papel, agendas, livrinhos e em outras são guardadas roupas como vestidinhos floridos, alguns com saias bem compridas. Casaquinhos, capinhas de chuva e também pequenas botas.

Algumas ferramentas de jardinagem, e produtos de limpeza ficam armazenados lá, junto com as máquinas de lavar e secar. A torneira da pia insiste em pingar numa pequena poça.

A luz principal não chega a iluminar tudo. Para clarear mais, é preciso acender uma lâmpada dentro, puxando uma cordinha no seu próprio bocal. Num canto mais escondido fica um abajur de pé com uma boneca pendurada. Um pouco mais adiante, uma caixa bem desarrumada de fotos antigas, algumas de uma menina brincando com um ursinho caídas no chão.

Um suporte de metal próximo a parede empilha sedutoras garrafas de vinho. Em cima de uma pequena mesa de plástico foi deixada uma carta junto de uma garrafa vazia. Pela janela basculante, sombriamente se enxerga a árvore do quintal com um balanço sendo movido pelo vento...

Ao lado da janela, uma corda foi amarrada numa das tubulações entre os varais. E o que está pendurado nela, embora pareça, não é uma boneca. Ao seu redor, uma selva de pelúcia ferozmente liberta: elefantes, tigres, jacarés, macacos, pássaros, e num canto afastado e escuro, um ursinho encardido.

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Wednesday, January 05, 2022

"É o amor..."

 



, mas mesmo se sentindo aflita, meio desesperada, Júlia não deixava também de se sentir alegre e satisfeita com o que poderia estar lhe acontecendo.

Júlia reencontrou uma antiga paixão que vivera na adolescência. Jurava que não correria perigo algum pois estava muito bem casada e ele também. Seria um reencontro inofensivo, de velhos amigos, afinal fazia muito tempo que não se viam.

O máximo que poderia acontecer seria um abraço apertado. Com esse abraço apertado ela não esperava que fosse sentir tantas coisas. Um cheiro, o prazer com o jeito de lhe tocar, o aperto tão difícil de escapar, o despertar de um desejo. Júlia quis que o tempo parasse ali, naquele momento, naqueles braços. Ela reencontrou também com uma Júlia que pensava ter existido somente no passado.

Ao voltar para casa , Júlia foi tomar banho. Ficou lembrando de Bernardo, do quanto foi intenso revê-lo, abraça-lo...Seus pensamentos foram interrompidos pela visão de uma lagartixa na parede do banheiro, perto de uma falha do azulejo. Parecia esperar por algo, estava atenta ao buraco da falha quando de repente, dele surge uma barata. A lagartixa a ataca rapidamente e num golpe só, abocanha a sua cabeça. Júlia assiste a cena como se estivesse em transe, percebe as patas traseiras da barata ainda se mexendo enquanto aos poucos ia sendo engolida. Antes de sair do banheiro Júlia volta a olhar para a lagartixa que está imóvel na parede. Imóvel e mais corpulenta, observou. Também, depois de comer uma barata inteira, e de uma só vez! – pensou ainda espantada Júlia. É a natureza mostrando que as coisas simplesmente acontecem quando têm que acontecer, refletiu. A lagartixa nem se incomodou com a presença dela no banheiro, a fome falou mais alto que o medo. Ela não podia perder aquela oportunidade. Talvez tenha visto a barata entrar no buraco do azulejo e sabia que em algum momento ela ia sair. Por isso estava tão atenta, e assim conseguiu pegá-la.

Com o marido no trabalho, e filha na escola, a casa lhe oferecia inúmeras tarefas para fazer. Era só olhar para ver. Mas ela fingiu que não estava enxergando e pegou o telefone. Viu que Bernardo havia mandado mensagens. Júlia sentou-se na poltrona e ficou a se deliciar com o que estava sentindo. Será que ele sabia em que pé andava o seu casamento, e esperava atento ela ter forças para sair do buraco? Se tornando assim uma presa fácil?

Seu marido chega em casa com a filha , os dois dando risadas, e Júlia se vê invadida por uma admiração tão grande por eles que chega a ficar irritada. O rádio da vizinha toca uma música sertaneja enquanto ela recebe um abraço duplo. E o refrão da canção ressoa como se lhe explicasse o que eles, apesar de tudo, estavam vivendo:




 

 

 

Tuesday, January 04, 2022

A fé de José

 


  O chapéu de couro, José usa para não tirar da cabeça o seu lugar de origem. O oxente ele não consegue parar de falar nem quando de repente lhe vem um Bah! O cafezinho ele não troca por nada, nem o seu prato de cuscuz com leite. Do churrasco ele gostou, não tem do que reclamar. A carne é realmente mais saborosa do que a da sua terra.

Para ele não tem tempo ruim. Já se acostumou com os dias mais frios. É só vestir mais camadas de roupa, manter-se aquecido com os casacos. Aprender a curtir o fogo de lareira, tomar chocolate quente, apreciar as mudanças na paisagem.

  O que José mais sente falta é do que se comemora no mês de junho lá no seu Nordeste. Se o dia de um só santo por lá às vezes já é um evento grandioso, as festas de Santo Antônio, São João e São Pedro, três santos no mesmo mês, é uma festa sem tamanho. Assim como a saudade que José carrega no peito.

 O arrasta-pé no ritmo do forró, o cheiro da pólvora, a fogueira queimando, o milho assando... A pamonha, o pé-de-moleque, o caruru, os bolos de macaxeira, de puba, a canjica, o mugunzá. Delícias que ele até podia fazer por lá, mas que era impossível ter o mesmo sabor, pois também era impossível encontrar todos os ingredientes.

Foi parar nas bandas do Sul para visitar a irmã que se casou com um gaúcho. Gostou tanto de lá que resolveu ficar. Arranjou logo um emprego e depois conseguiu abrir o seu próprio negócio. Nunca foi uma pessoa tão animada, falante, mas a mudança de ares favoreceu o nascimento de uma personalidade que ele até então desconhecia, apesar de sentir que ela já estava ali por dentro, em algum lugar, querendo despertar.

Quando a tristeza lhe aperta o coração, ele lembra do seu avô dizendo que não tem nada que uma boa música ou um bom livro não possa curar, nem lugar que assim não se transforme num paraíso. E quando as lembranças de um caipira insistem em permanecer, ele as transforma em histórias e conta aos seus clientes, que caem na risada. Foi num desses dias em que ele dava o seu show de comédia caipira no armazém, que Antônia apareceu. Morena de cabelos cacheados e compridos, Antônia era gaúcha mas com pais também nordestinos. Seu nome foi pra pagar a promessa que a sua mãe fez para o santo casamenteiro. José imediatamente se encantou por ela. Organizou logo um forró, achou um trio pé de serra por lá e chamou Antônia para dançar. Foi no xote, no baião, e no xaxado, que eles demonstravam o quanto já estavam apaixonados. Quem herda, não furta. Antônia não nega o sangue que corre nas veias. E que rapidamente deu positivo para a gravidez dos gêmeos: Pedro e João. Os santos do mês de junho estavam todos na família de José, as festas juninas agora estavam completas para eles. E o armazém de nome Oxente, agora era OxenTchê!

A saudade da sua terra foi aos poucos diminuindo... O caipira de vez em quando usava um chapéu campeiro e tomava um chimarrão. Viu que suas raízes nordestinas podiam ser plantadas em qualquer chão, e dar belos frutos. Era só continuar pegando um pouco da fé que tinha em Santo Antônio, São João e São Pedro, para depositá-la em si mesmo. E o caipira começou a comemorar também o dia de São José.



Monday, January 03, 2022

Depois




Fizeram amor na sala, tentando fugir um pouco da rotina. E a coisa foi tão quente, que quebraram a cadeira perto da janela. Lugar onde às vezes, gostavam de ler. As cortinas brancas movimentadas sutilmente pelo vento criaram um bonito cenário. Tudo parecia estar seguindo uma bela coreografia. Paloma e Carlos acertaram o passo, criaram um ritmo e souberam aproveitar o momento como há muito tempo não faziam por causa dos filhos. Depois, ainda sem roupa, os dois foram para o quarto. Falaram sobre trabalho, sobre as crianças, do quanto ela gostava de inventar histórias quando pequena, e da vez em que todos acabaram acreditando numa que ela escreveu...o papo após o sexo sempre rolava mais fácil, mais leve, e o prazer assim era prolongado.

Paloma foi para a casa da mãe pela tarde e Carlos tirou o dia de folga. Quando o filho André chegou cabisbaixo da escola, seu pai já sabia o motivo: ele se dera mal de novo nas avaliações. Falou que talvez perdesse o ano. Carlos não economizou no sermão. Disse que ele tinha a obrigação de estudar, de se esforçar. Que as coisas estavam cada vez mais difíceis, e que se ele não passasse de ano, não receberia mais a mesada.

André prometeu levar a sério os seus estudos. Entrou no quarto fechando a porta calmamente. Carlos foi caminhar ali pela vizinhança. No elevador, pensou em depois conversar melhor com André, tentar ficar mais próximo dele. Sentiu que era necessário.

      O prédio começou a ser decorado para o Natal. Carlos pôde notar isso com certa surpresa e viu quando algo despencou de uma janela, mas não pôde enxergar o que foi. Muita gente se aproximou,  e também curioso, acabou desviando a caminhada. 

Abrindo espaço na multidão, Carlos viu o porteiro do prédio que, com lágrimas nos olhos tentou impedi-lo de seguir adiante. Driblando-o, Carlos conseguiu chegar aonde jamais ia querer estar. Não foi um enfeite de Natal que havia caído. - André??!!- Gritou.

A sirene de uma ambulância começava a ser ouvida. E a imagem transtornada da sua esposa surgiu. O porteiro a segurá-la, e com aquela força que nem ela sabia de onde vinha, empurrava, esmurrava, mordia, chutava, e enfim, conseguiu escapar dos braços de quem quis impedi-la de ver o próprio filho.

 Ela viu também a cadeira quebrada, André subindo nela para pegar um livro da estante, se desequilibrando, e diferente da última vez que ela presenciou, a sua queda da janela sem proteção. 

    “Meu filho!!” Aos prantos, Paloma tocava o rosto de André, que já não estava ali. Quem ali estava era o seu marido, ou parte dele, que já definhava. Era tanta dor que ela chegou a pensar que iria perdê-lo também. Ao tentar abraçá-lo, o ouviu dizendo que a culpa era dele, que não deveria ter sido tão duro. Puxando a gola da sua camisa, Paloma disse que não, que ele não era o culpado. Ela ia trocar a cadeira por outra, mas resolveu deixar pra depois.


Sunday, January 02, 2022

Macabra solução




                               Com o fim das férias, o percurso do passeio com o seu avô ficou mais agitado. Não demorou para, ao passarem pelo pátio da escola, as doses de crueldade começarem a ser distribuídas gratuitamente: "Olhem, parece um monstro!, Pode ser um anelígena como vi na TV!, Não! É o Bicho-papão!, Hum... será o Fred Cruguer do filme de terror?!..."

                              -Essas crianças... resumiram bem o que nos acontece quando chega a velhice. Pelo menos, ainda estou vivo!- Falou bem humorado, como quase sempre fazia seu Mário.

                         "...Não, seus bobos! Ele é um zumbi, isso sim!" A voz irritante dessa menina alcançou os ouvidos de Rodrigo trazendo tanta raiva, que ele precisou saber quem era a dona do insulto. Uma loirinha de cabelos encaracolados que usava óculos. Parecia ser a líder daquela turminha da escola. Quando viram Rodrigo e perceberam o seu ar de reprovação, um deles, o mais gordinho, teve a ousadia de lhe perguntar qual era o problema. E Rodrigo se sentiu obrigado a buscar logo uma solução.

                             As crianças estavam vestidas de beca. Era o dia da formatura do ABC daqueles pestinhas, logo constatou Rodrigo. Não tinha dia melhor para realizar o que estava tramando.

                            Preparado para registrar o evento da escola de onde um dia foi aluno, Rodrigo conseguiu entrar facilmente. Tinha na bolsa também pequenos panfletos para distribuir, com mensagens sobre o quanto precisam ser respeitados os mais velhos. Que os pais não se esquecessem nunca de ensinar essa lição tão valiosa para os filhos, para o futuro.

                            A loirinha de cabelos encaracolados estava radiante. E seus pais presentes e orgulhosos, pois a filha deles era a oradora da turma. A alegria estava estampada nos olhos dos alunos, professores, dos pais, de todos os que foram à cerimônia.

                                 Rodrigo resolveu dar uma passadinha no bar da esquina. Ao retornar, posicionou o tripé, e ao invés da câmera, pôs a arma que pegou do seu pai. Num flash, ele saiu atirando. Viu quando a loirinha caiu com os óculos intactos na face, e ainda mexeu um pouco as pernas. Viu também o fã de alienígenas que agora parecia um deles. O outro que, escondido, vira algumas cenas da Hora do pesadelo, estava uma coisinha horripilante. O que achou ter visto um bicho-papão estatalou-se no chão, mas sem soltar o canudo. E o mais gordinho que perguntou se Rodrigo tinha algum problema, foi o último a ser atingido, e bem na cabeça. De onde saiu o gatilho para Rodrigo realizar aquela macabra solução. Logo depois, ele acertou o seu próprio coração.

                                A mãe de Rodrigo lembrou de quando o seu filho foi orador da turma na sua formatura do ABC. Nunca esqueceu como ele, um pouco nervoso, fez no microfone o juramento, depois de ensaiar tantas vezes: " Prometo ser um bom estudante para a alegria dos meus pais, dos meus mestres, e para a grandeza do Brasil." E a tristeza dele ao perceber que o seu pai não estava assistindo, pois resolveu dar uma passadinha no bar da esquina.