Wednesday, December 22, 2021

Primeiro filho, menina?


 “You cannot find peace by avoiding life.”

Virgínia Woolf

 Márcia passou os nove meses rezando para que aquele bebê dentro da sua barriga fosse do sexo masculino. Primeiro filho, dizia a família do seu marido, tinha que ser macho, varão! Ao contrário da sua mãe que nunca teve essa preocupação. Por isso, como sempre disse ela, Deus presenteou a dona Maria com cinco meninos e cinco meninas sendo o primeiro a filha que realizou o seu sonho de ser enfermeira formada na Anna Nery do Rio de janeiro.

Além da pressão para ter um bebê menino, Márcia também sofreu vários aborrecimentos quando foi morar na casa da sogra, principalmente com a sua cunhada, que era a única filha mulher, mimada, sentindo o seu reinado ameaçado por quem ia dar aos seus pais o primeiro neto. Não aceitava ter que dividir o seu quarto com Márcia que teve várias vezes os seus pertences postos para fora e com a porta trancada, cruz que ela teve que carregar enquanto estava grávida de Verônica. Outra cruz que também pesou muito foi o que ela ouviu no dia do seu casamento no civil. Além de não ter o sonho de casar na igreja devidamente realizado, viveu o pesadelo de ouvir o seu sogro gritar depois de umas doses de whisky, na frente de todos os convidados para a cerimônia: -Quem quiser fazer filho, que vá para a casa de praia! - Lugar para onde seu querido namorado hoje marido, a levou, depois de ter implorado pela permissão de dona Maria.

Após três tentativas frustradas na maternidade, uma cesariana teve que ser realizada. A bebê estava de quina pra lua, literalmente, e ao ser retirada do ventre materno, não fez nenhum ruído. Ao perceber o silêncio, o desespero tomou conta de todos, inclusive da médica que rapidamente deu uns tapinhas de leve no bumbum daquela neném que ela falou ser tão grande e bonita. Junto com um pequeno engasgo, o chorinho mais esperado invadiu o ambiente e trouxe mais lágrimas àquela mãe de primeira viagem sem fé que já esperava uma outra má notícia. Já não bastava o seu primeiro filho ser uma menina? “Ao menos era branquinha...” e pelo visto, pelo que estava ouvindo, parecia não ser muda.

Verônica veio ao mundo com preguiça. Preguiça de nascer, de chorar, de dar qualquer sinal de vida. Talvez por não se sentir tão bem-vinda, querida, desejada. Ou talvez por medo, por já saber que ia precisar ter mais do que a vida pode lhe dar para conseguir se sentir realmente viva. E isso poderia doer, ainda mais não sendo o filho homem sonhado, sendo uma mulher, neta de dona Maria, alagoana que deixou seu marido que a maltratava e com o trabalho de suas próprias mãos conseguiu criar tão bem os seus dez filhos e também alguns netos, numa outra cidade, cozinhando, costurando, tratando tão bem os hóspedes do seu pensionato que sempre estava cheio. Naquela época ela já dizia: esse mundo está perdido! Agora, apesar de tudo, Márcia diz a Verônica: - Sua avó Maria só não ia querer ver seus filhos, netos e bisnetos sem aquela alegria inspiradora que ela sempre teve, alegria de viver.


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